EGIPTO FARAÓNICO: SOCIEDADE, ECONOMIA E CULTURA





Egipto faraónico



A constituição do Estado faraônico por volta do ano -3000 e o período obscuro que se seguiu com certeza corresponderam a um grande desenvolvimento econômico, evidenciado em alguns aspectos pelas sepulturas reais e privadas da época tinita. Não há meios de saber se a necessidade de coordenar a irrigação foi a principal causa da formação de um Estado unificado ou se a unificação do país sob os reis tinitas, aliada ao desenvolvimento da escrita, possibilitou organizar as economias regionais, com a racionalização dos trabalhos de infraestrutura e a distribuição sistemática dos recursos alimentares. O fato é que, até o século XIX da Era Cristã, a prosperidade e a vitalidade do Egipto estiveram ligadas a cultura de cereais (trigo, cevada). Um sistema de bacias de inundação, que controlava e distribuía as águas das enchentes e depositava o limo no interior de diques de terra, perdurou até o recente triunfo da irrigação permanente: sua existência é comprovada desde o Médio Império, podendo-se supor que seja ainda mais antigo.
Esse sistema só permitia uma colheita por ano; por outro lado, a curta duração do ciclo agrícola liberava grande quantidade de mão de obra para os vultosos trabalhos exigidos pelas construções religiosas e reais. Os antigos também praticavam a irrigação permanente, obtendo água de canais ou bacias escavadas até o lençol subterrâneo. Os rendimentos médios eram bons. As autoridades dos templos e os altos funcionários exerciam poderes de patronato através do controle dos recursos alimentares, que variavam conforme o período.

O pão e a cerveja, feitos de cereais, constituíam a base da dieta, mas a alimentação
dos antigos egípcios era variada, complementada com produtos das hortas e dos pomares. Também se produzia uma grande variedade de vinhos. A criação de abelhas fornecia o mel. O óleo era extraído do sésamo e do nabk. O Egipto faraônico não transformou todo o vale em terras agrícolas: além dos recursos que extraía dos campos e hortas, explorou também os grandes pântanos e lagos das bordas setentrionais do Delta, as praias do Lago Méride, bem como as depressões a beira do deserto e os meandros do Nilo. Esses pehu abrigavam muitas e variadas aves selvagens. O Nilo oferecia grande variedade de peixes.


Finalmente, os pântanos serviam de pastagem para bovinos. As cabras e os carneiros criados nas terras incultas e nas bordas do deserto, juntamente com os porcos (apesar de algumas proibições), ocuparam um espaço considerável na dieta popular.
A importância do deserto residia na variedade de recursos minerais que oferecia. A vitrificação desenvolveu-se muito cedo, estimulando a manufatura de objetos com a aparência da turquesa ou lazurita. O Egipto do Novo Império aperfeiçoou as técnicas de fabricação de vidro graças aos contatos com a Ásia.

Uma das riquezas que o país extraía era o ouro, proveniente do deserto arábico e da Núbia. Símbolo da imortalidade perfeita, esse metal era considerado um símbolo de riqueza e era bem mais valorizado do que a prata. As numerosas jazidas de cobre existentes nos desertos eram de teor muito baixo (exceto no Sinai) e o Egipto logo se tornou dependente do cobre asiático. A Idade do Bronze e, posteriormente, a Idade do Ferro foram tardias no Egipto.
O metal era relativamente raro e precioso; a madeira e o sílex substituíram-no com sucesso nos implementos agrícolas, e a pedra dura nos instrumentos para esculpir; os utensílios e armas de metal eram conservados e distribuídos pelos serviços públicos.
A capacidade industrial do antigo Egipto era insuperável em dois sectores: têxteis e papel. O papiro, usado para diversos fins – na confecção de velas, cordas, vestuário, calçados –, possibilitou principalmente a fabricação de um suporte muito flexível para a escrita. Esse material era a fonte de poder do escriba e foi muito solicitado no exterior com a expansão da escrita alfabética n as adjacências do Mediterrâneo oriental.


O desenvolvimento dos transportes foi um fator determinante no progresso do regime faraônico. O asno era o animal de carga ideal nos campos e nas trilhas do deserto e precedeu e muitas vezes substituiu o camelo, adotado lenta e gradualmente nos campos a partir da época persa. Para o transporte de carga a longa distância, o Egipto utilizava o rio e seus canais: as embarcações grandes  e pequenas eram rápidas e seguras. As qualidades precoces da náutica egípcia possibilitaram tanto a centralização econômica quanto as prodigiosas realizações arquitetónicas. Além disso, mesmo em tempos muito antigos, barcos a vela percorriam o mar Vermelho e o Mediterrâneo.
É preferível evitar termos abstratos na descrição dos métodos de produção faraônicos. Os documentos disponíveis permitem distinguir alguns dados gerais. O comércio exterior, a exploração de minas e de pedreiras eram atividades estatais. A maior parte das transações comerciais conhecidas pelos textos envolve pequenas quantidades de mercadorias e é constituída por contratos privados entre particulares; a intervenção de intermediários profissionais é rara. Tudo indica que, de modo geral, a produção e a distribuição estavam nas mãos do Estado.

Com certeza, as expedições para Punt, Biblos, Núbia e para o deserto a procura de mercadorias exóticas e pedras eram, em geral, enviadas pelo rei e conduzidas por funcionários governamentais. A construção dos templos também era função do governo. Na época imperial, o Reino de Kush, anexado, e os protetorados palestino e sírio, por exemplo, eram explorados diretamente pela coroa. Já o aproveitamento da terra egípcia nao dependia exclusivamente do faraó. Ao lado dos domínios reais havia as terras dos deuses; estes possuíam campos, rebanhos, oficinas etc., dispondo de uma hierarquia burocrática própria.


Os altos funcionários beneficiavam-se de dotações fundiárias que eles mesmos dirigiam. Contudo, praticamente em todas as épocas, o direito a posse da terra se aplicava a áreas limitadas e esparsas, de modo que as grandes fortunas não tomaram a forma de latifúndios. Sabe-se que existiram pequenas propriedades, principalmente durante o Novo Império.
Em número relativamente pequeno, os estrangeiros deportados para o Egipto ao tempo das grandes conquistas eram trabalhadores especializados ou colonos militares. Podemos supor que nas aldeias predominava uma economia doméstica e que a parte principal do trabalho no campo era feita pelos homens. Nas cidades -mercado, nos domínios reais e templos, a especialização profissional era bem desenvolvida. As corporações trabalhavam para o rei ou para os templos, e o ofício se transmitia de pai para filho.

A organização e a distribuição da produção, o controle da ordem pública e a supervisão de toda e qualquer actividade eram responsabilidade de funcionários públicos sob a autoridade do príncipe – o faraó ou, em períodos de cisma, os chefes locais – ou dos templos. Esses funcionários eram recrutados entre os escribas, já que o conhecimento da escrita era a chave de toda erudição e permitia o acesso as técnicas superiores, constituindo, assim, uma fonte usurpada de poder e de bem-estar. Esses escribas, depositários da cultura religiosa e leiga, dominavam todas as actividades profissionais (no Novo Império os altos oficiais do exército eram escribas). Podiam ser engenheiros, agrônomos, contadores ou ritualistas; muitos acumulavam vários cargos.

A história faraónica parece ter-se desenrolado ao ritmo da luta entre o alto funcionalismo, que tendia a se constituir num poder hereditário e autónomo, e a monarquia, apegada ao direito de controlar as nomeações. O ideal confesso da sociedade egípcia era uma monarquia forte, considerada como o único meio de dar ao país o impulso necessário ao seu bem-estar.
O soberano era a personificação do serviço público: o termo “faraó” vem da expressão per-ao, que designava no Antigo Império a “Grande Casa” do príncipe, incluindo sua residência e seus ministérios, e que no Novo Império passou a designar a pessoa do rei. A sucessão real cerca-se de algum mistério. Com certeza, era costume que o filho sucedesse ao pai no trono, conforme o modelo mítico de Osíris e Hórus, o protótipo do filho que sepulta o pai e vinga sua morte. Mas o direito de realeza não se fundamentava apenas na transmissão hereditária masculina por primogenitura. O rei era visto como predestinado a sua posição. Desse modo, um “direito divino” directo superava a legitimidade dinástica. Na realidade, cada reinado era um reinício.
Um estudo das listas de títulos dos funcionários superiores e inferiores e dos poucos textos legislativos e administrativos que chegaram até nós dá uma noção razoavelmente precisa da organização governamental. Organogramas engenhosos, se não rigorosos – que evidentemente variavam de acordo com o período – comprovam a existência de práticas sofisticadas de gerência e de técnicas de secretariado e contabilidade bastante avançadas.


No ápice do sistema situava-se o tjaty ou “vizir”. Esse primeiro-ministro, responsável pela ordem pública, era comparado ao deus Tot, “coração e língua do Sol Rá”; era, antes de tudo, a suprema autoridade legal na Terra, depois do faraó e do ministro da justiça. Contudo o tjaty (ou os dois tjaty durante o Novo Império) não era o único conselheiro do rei, nem necessariamente o principal. Na época imperial, o governador da Núbia, um “filho real” honorário, quase soberano em seu próprio território, obedecia directamente ao faraó.
O poder político dos ministros ao que parece não se reflectia exactamente na hierarquia administrativa. Algumas personalidades com certeza foram tao influentes quanto os vizires de seu tempo. O despotismo radical da monarquia faraónica entregava a Residência a resolução dos principais conflitos políticos. A proscrição da memória de diversos altos funcionários é o testemunho mudo das crises governamentais.



O rei era responsável pela segurança do país. Em tese, todo o mérito pelas vitórias e conquistas era seu. E claro que, desde os tempos das pirâmides, o país dispunha de um alto comando especializado, a um só tempo militar e naval. Dois aspectos, já manifestados no III milénio, serão característica constante dos exércitos faraónicos: a participação dos militares nos principais empreendimentos económicos ou de construção como supervisores ou mão de obra  e a utilização de tropas violentas recrutadas no exterior. Embora com fortes tendências militares devidas ao senso de ordem e gosto pelo prestígio, os egípcios não possuíam temperamento guerreiro. Durante o Novo Império, época de importantes conflitos internacionais, houve uma expansão inédita do exército profissional. Dividia-se ele em duas armas de serviço, carros de batalha e infantaria subdivididas em grandes corpos comandados por uma hierarquia complexa e servidas por uma grande burocracia.

Com certeza uma das maiores realizações da civilização faraônica, e talvez uma de suas fraquezas, foi a imagem esplendida que fez do mundo e das forças que o regem, uma imagem coerente que se manifesta nos mitos, nos rituais, na arte, na língua e em suas obras de conhecimento. Para entender as forças da natureza e os fenômenos naturais, a mitologia aceita todas as imagens e lendas legadas pela tradição. Podem-se ter várias divindades “únicas”. Assim, havia várias concepçoes da origem do universo, que se combinavam de diversas maneiras nas grandes sínteses elaboradas localmente no decorrer dos séculos, cada uma das quais podendo ser restabelecida em toda a sua pureza pela realização de um determinado ato ritual, a que conferia uma dimensão cósmica.

Os grandes mitos, bem como as práticas rituais básicos, são comuns a todos os centros populacionais; contudo, são deuses diferentes – cada qual com seu próprio nome, imagem tradicional, manifestações animais e deuses associados os “senhores” das várias cidades, havendo ainda numerosos deuses locais chamados pelo nome de Hórus, assim como inúmeras deusas – as temíveis Sekhmet ou as amáveis Hátor. A presença de diferentes religiões locais em épocas pré-históricas poderia explicar muito do politeísmo que prolifera numa religião cuja unidade é manifesta. Parece que esta tendia, através da identificação de certos deuses a outros, a reduzir essa pluralidade a poucos tipos: uma divindade suprema, geralmente um deus solar e muitas vezes explicitamente identificado a Rá; uma deusa-consorte, que é o Olho de Rá; o deus-filho guerreiro, como Hórus-Anhur; um deus morto, como Osíris (Seker, Seph etc.).

Cada deus criou sua cidade; zelava não só por seu domínio mas também por todo o Egipto. O rei ocupava-se simultaneamente de todos os deuses. Herdeiro do Sol e sucessor de Hórus, era incumbido de manter a ordem criada pela providencia divina, devendo, para tanto, sustentar os seres divinos, desviar a ira da deusa, e valer-se da perpétua colaboração com o divino para garantir o ciclo anual, a segurança das fronteiras, a felicidade e o governo de Maât entre seus súditos. Para conseguir tudo isso, a ciência sagrada empregava a magia da palavra e do gesto, da escrita, das imagens e das formas arquitetónicas; enfim, todos os processos também usados para assegurar a vida pós-morte.
A representação dos ritos das cerimônias e a escrita dos textos que os acompanhavam nas paredes dos templos perpetuavam sua acção. O arquiteto fez do templo um modelo reduzido do universo, dando-lhe, desse modo, perpetuidade. Acima de tudo, o templo é um lugar de trabalho onde o rei, auxiliado pelos sacerdotes iniciados, pratica uma alta magia de Estado para assegurar a boa
marcha dos acontecimentos.

A identificação da terra egípcia com o mundo organizado é indicador, em particular, da visão que tinham os súditos do faraó do mundo exterior. Outros povos africanos e semitas e as cidades e monarquias estrangeiras eram comparados as forças do caos, sempre prontas a subverter a criação. O rei existe para manter a harmonia perfeita da criação. Nesse sentido, a época ideal foi “o tempo de Rá”; os sacerdotes do Período Final chegaram a imaginar uma idade de ouro perdida, na qual Maât reinava sobre a Terra. O sistema perfeito não é uma utopia que se procura alcançar com a invenção de novas regras ele existiu no princípio e torna-se novamente real a partir do momento em que a pessoa se conforma a Maât. A ordem divina corresponde não apenas a estrutura e os ritmos do mundo físico, mas uma ordem moral – Maat –, a norma da verdade e da justiça que se afirma quando Rá triunfa sobre seu inimigo e que, para a felicidade do género humano, deve prevalecer no funcionamento das instituições e no comportamento individual. “Rá vive por Maât”. Tot, o deus dos sábios, contador de Rá, juiz dos deuses, e “feliz por Maât”.


A ética corrente colocava no mesmo plano as virtudes propriamente ditas e as qualidades intelectuais, a retidão e o decoro, a impureza física e a baixeza de carácter. Baseada numa psicologia sem ilusões, exaltava a submissão aos superiores e a benevolência com os inferiores. Admitia-se que o sucesso mundano é consequência natural da virtude, e se desenvolveu muito cedo a ideia da retribuição póstuma das acções de uma pessoa. Dava-se muita atenção ao ensino do bom comportamento. Todo excesso é prejudicial. Contudo, alguns sábios introduzem em suas reflexões uma forte religiosidade pessoal e expressam uma aspiração a superioridade individual: um coração honesto é preferível a submissão formal aos rituais. É em Deus que se encontra o “caminho da vida”.

Não se deve subestimar a dívida da sabedoria bíblica a cultura egípcia. A preocupação pelo próximo é grande, mesmo se relacionada com maior frequência a necessidades sociais do que a compreensão caridosa. Os reis e os escribas deixaram boas lições de ética social: concentrar esforços para atender aos interesses do rei e de seu povo, não para beneficiar o forte em detrimento do fraco, não para se deixar corromper, não para trapacear no peso e na medida. O Egipto também desenvolveu o conceito de dignidade humana. O quadro que a ideologia oficial traçava da ordem ideal correspondia, sob todos os pontos de vista, ao que o país apresentava quando, com a reunificação das Duas Terras, uma monarquia sólida e uma administração conscienciosa asseguravam a prosperidade e a paz geral. É notável constatar que o direito faraônico permaneceu firmemente individualista. No tocante as decisões reais e aos procedimentos e penalidades legais, tudo indica que homens e mulheres de todas as classes eram considerados iguais perante a lei. A família restringia-se ao pai, a mãe e a seus filhos jovens; as mulheres desfrutavam dos mesmos direitos em matéria de propriedade e de assistência jurídica. No conjunto, a responsabilidade era estritamente pessoal. A família no sentido amplo não tinha consistência legal, e a posição de um homem não se definia em função de sua linhagem.
O mesmo individualismo reinava nas crenças e nas práticas relativas a vida pós-morte. Cada um, de acordo com seus recursos, preparava sua outra vida, a de seu cônjuge e de seus filhos em caso de morte prematura. O filho deveria participar dos ritos funerários de seu pai e, se necessário, assegurar seu enterro.

O ser humano (ou divino) reúne, além do corpo mortal, vários componentes o Ka, o Ba e outras entidades menos conhecidas, cuja natureza ainda é difícil definir e cujas inter-relações são obscuras. As práticas funerárias destinavam-se a garantir a sobrevivência dessas “almas”; no entanto, uma característica bem conhecida da religião egípcia é o fato de ter ligado essa sobrevivência a preservação do próprio corpo pela mumificação, e de ter assegurado, com arranjos elaborados, uma vida além-túmulo pelo menos tão intensa e feliz quanto a terrena.


Relações do Egipto com o resto da África



Admite-se atualmente que a arqueologia não revelou indícios decisivos de contatos entre o Egipto e a África ao sul de Méroe. Entretanto, isso não significa que se deva inferir, com base num raciocínio a silêncio, que na Antiguidade não houve vínculos entre o Egito e o resto do continente africano. Como nesse campo as informações são escassas e as conclusões fundamentam-se, por vezes, em indícios insuficientes, deve-se proceder com um rigor científico maior do que o habitual, aceitando apenas os fatos cientificamente estabelecidos.
Antes de enfocar os vestígios – quer sejam seguros, hipotéticos ou improváveis das relações do Egipto com o restante do continente na Antiguidade, devemos observar que, seja qual for a tese finalmente adotada com respeito ao povoamento antigo do Egito, parece haver uma considerável discrepância cronológica e tecnológica entre este último e as civilizações periféricas. É de fundamental importância perceber as razoes desse processo, uma vez que esclareceriam em que medida a escrita foi adotada como instrumento de coesão social e cultural no Vale do Nilo.
O Simpósio do Cairo (1974) enfatizou a estabilidade étnica e cultural do Egipto durante os 3 mil anos de governo faraónico. O baixo Vale do Nilo foi como uma esponja que, por mais de trinta séculos, absorveu as infiltrações ou imigrações oriundas de várias periferias, excepto nas épocas em que se intensificava a pressão de povos estrangeiros. A oeste, e também ao sul, povos que mantinham entre si diferentes graus de parentesco eram confinados em seu habitat pelas fortificações das fronteiras egípcias, ou então considerados úteis ao vale enquanto fornecedores de alimentos ou homens para a sua defesa.

A não ser por esse sentimento de particularidade egípcia, torna-se difícil saber como os egípcios se comportavam em relação aos seus vizinhos mais próximos. Considerava-se que estes – assim como todos os outros povos com os quais os egípcios mantinham contacto – tinham a obrigação natural de contribuir com homens e riquezas para a civilização faraônica. Desde o início, o tributo constituía um dos símbolos de submissão dos povos vizinhos do Egipto, e o não pagamento implicava o envio de expedições punitivas. No entanto, a atitude dos vizinhos nem sempre era de resignação e passividade.
O Egipto nem sempre estava em condições de ditar-lhes ordens; suas relações com a África variaram com os séculos. Admite-se que durante o período pré-dinástico decresceram os intercâmbios humanos com o Saara. Pouco se sabe a respeito desses intercâmbios. É certo que durante o período dinástico o Egipto exerceu influencia sobre o Saara, embora também pouco se saiba sobre isso.
Para os egípcios do período dinástico, de fato, os saarianos eram principalmente os líbios, que paulatinamente se concentraram no norte do deserto. Desde o início do período faraónico, o compromisso da política comercial e militar egípcia com o norte e o nordeste opunha-se, até certo ponto, ao desejo de fazer contactos com o continente africano e de penetrar no seu interior. É preciso ter em mente essa contradição fundamental sempre que se for lidar com a história egípcia. O Egipto, país mediterrânico e marítimo, tinha de controlar um espaço útil aberto para o Mediterrâneo e para o norte do mar Vermelho. Como povo africano, porém, os egípcios provavelmente se viram tentados a penetrar o interior ao longo do Nilo, ao menos até a Quarta Catarata. Também devem ter sido atraídos pelo Chade, atravessando os vales antigos que conduzem a margem esquerda do Nilo, e pela Etiópia, rica em marfim. O maior obstáculo encontrado ao sul talvez tenha sido as extensas regiões pantanosas e que durante toda a Antiguidade protegeram o segredo dos vales extremos do alto Nilo. Nos faltam dados arqueológicos sobre as relações que os egípcios mantinham, por terra, com o sul distante.

Portanto, no momento temos que recorrer a hipóteses baseadas em textos, na linguística, na etnologia ou no senso comum. Mas por muito tempo os próprios egiptólogos consideraram a história do Egipto mediterrânica e branca; assim, torna-se necessária, agora, uma mudança das técnicas e dos materiais de pesquisa – e principalmente da mentalidade dos pesquisadores – para que se possa restituir a terra dos faraós ao seu contexto africano. As escavações arqueológicas revelaram semelhanças entre a região de Cartum e o baixo Vale do Nilo no período neolítico, semelhanças essas difíceis de
explicar. Com o Antigo Império, porém, essa aparente similaridade deixou de existir. Já na I dinastia, fortificações protegiam o sul do Egipto contra os vizinhos meridionais. Cada vez mais, no decorrer de toda a sua longa história, diferenças políticas e culturais e interesses conflituantes separaram os territórios ao norte da Primeira Catarata daqueles que se situavam ao sul da Quarta Catarata. Apesar disso, as complexas e variadas relações entre os egípcios e os povos do sul, a quem chamavam de nehesi, nunca foram inteiramente rompidas.

A baixa Núbia interessava aos egípcios pelo ouro que produzia, e as regiões nilóticas, localizadas mais ao sul, pelas rotas que conduziam ao interior africano através do Nilo Branco, dos vales saarianos ou do Darfur. O acesso ao sul foi uma preocupação constante por toda a história do Egipto, o que provavelmente também explica a importância atribuída ao controle dos oásis ocidentais, outra rota de acesso paralela ao Nilo. Desde o início do Antigo Império, o Sudão, assim como a Líbia, representou para os egípcios uma fonte de mão de obra, de animais e de minerais. O final da V dinastia marca o início das relações do Egipto com o Sudão. Nesse mesmo período, criou-se um novo cargo político e económico conhecido como “governador
do sul”. O detentor era responsável pela defesa da entrada meridional do Egipto, pela organização dos intercâmbios comerciais e pelo favorecimento da circulação das expedições mercantis. O Império de Kerma, no sul, menos directamente afectado pela invasão egípcia, sofreu influencia do Egipto no plano cultural desde -2000, mas conservou identidade própria até o seu término, por volta de -1580. Os egípcios acabariam por dar a essa cultura, conhecida desde -2000, o nome de Kush;, termo que empregavam para caracterizar o reinado que se estabeleceu ao sul da Segunda Catarata após -1700.



Quando os hicsos tomaram as regiões setentrional e central do Egito, Kush reforçou sua independência e seu poder. O Reino de Kush constituía um perigo em potencial para os faraós. Com a XVIII dinastia, a pressão contra o Sudão uma vez mais se fortaleceu, e as relações ampliaram-se numa escala sem precedentes. Simultaneamente, tomou impulso a egipcianizaçao das regiões entre a Segunda e a Quarta Catarata.
A Núbia e o Egito até então nunca estiveram tao próximos. Em -1400 foi construído o templo de Soleb. O papel militar, e por vezes administrativo, exercido pelos sudaneses tornou-se mais importante do que nunca, culminando com a ascensão da dinastia etíope. Mas, embora egipcianizados, os habitantes dos altos vales não se tornaram egípcios.
A conquista de Tebas pelos assírios coincidiu com a ascensão do Império  meroíta no sul. A defesa dessa região contra os ataques do norte tomou-se indispensável, visto que os exércitos egípcios, a partir dessa época, passaram a incorporar enormes contingentes de mercenários hebreus, fenícios e gregos. Por falta de investigações suficientes, pouco se sabe sobre as relações, por certo difíceis, entre o Novo Império nilótico e o Egipto.

Gastou-se muita tinta com o propósito de se localizar o legendário Reino de Punt, com que os egípcios mantiveram relações pelo menos durante o Novo Império, e que aparece nas imagens de Deir el-Bahari. Hoje existe quase um consenso quanto a localização de Punt no Chifre da África, embora ainda persistam muitas dúvidas com relação a seus limites precisos.
Podemos distinguir etapas sucessivas nas relações entre Egipto e Punt. A primeira antecedeu o reinado da rainha Hatshepsut. Naquela época, os egípcios possuíam muito poucas informações sobre Punt. Obtinham incenso através de intermediários. A segunda etapa começou com a rainha Hatshepsut. Uma frota de cinco navios, segundo o artista que ornamentou o templo de Deir el-Bahari, foi enviada com ordens para trazer árvores que produziam incenso. Numa câmara do templo há uma representação do nascimento divino de Hatshepsut, em que sua mãe, Amósis, é despertada pelo aroma do incenso originário da terra de Punt. Nesse caso, a associação do nome de Punt com a origem divina da rainha é um indício da amizade que a rainha do Egipto mantinha com Punt, cujos habitantes adoravam Âmon. As pinturas que retratam essa expedição fornecem-nos informações sobre a vida na terra de Punt, seus habitantes, suas plantas e seus animais, suas cabanas de forma cônica construídas sobre estacas, em meio a palmeiras, ébanos e mirras. As necessidades constituem um poderoso estímulo a exploração e a procuram de relações estáveis. O Egipto precisava dos produtos africanos, como marfim, incenso, ébano e, de modo mais geral, madeira. Quanto a última, uma fonte alternativa era, evidentemente, o Oriente Próximo. Todavia, a utilização da
madeira originária do interior da África só pode ser comprovada através de um exame da totalidade dos testemunhos egípcios.



As relações do Egipto com o restante da África são vistas frequentemente como um fluxo unilateral, como uma difusão da cultura egípcia para o exterior. Tal óptica ignora o fato de o Egipto ter dependido materialmente da venda de determinados produtos africanos. Consequentemente, as influencias devem ter sido recíprocas. Nesse campo a investigação é trabalhosa. A reconstituição da antiga rede de intercâmbio de mercadorias a partir de textos e representações exige extensa e minuciosa pesquisa fundamentada na arqueologia e na linguística.
Uma expedição marítima pelas costas da África ao tempo do faraó Necau II (-610 a -595) atraiu a atenção de pesquisadores, mas nem todos concordam quanto a exactidão histórica dos fatos registrados, um século mais tarde, por Heródoto.
A expedição de Harkhuf, a mando de Pépi II, suscitou conclusões contraditórias e inaceitáveis. Harkhuf levou para Pépi II um anão dançarino originário da terra de Yam. Alguns chegaram a concluir, com base na hipótese insustentável de que o anão era um pigmeu, que esse exemplo único prova a existência de
relações entre o Egipto, o alto Nilo e o Chade. É bem verdade que a expedição de Harkhuf pertence ao domínio da história. Contudo, pouco se sabe sobre o antigo habitat dos pigmeus, sendo arriscado afirmar que eram encontrados em grande número nas regiões superiores das bacias do Nilo. Além disso, não há provas de que o tal anão fosse um pigmeu, e até o momento não se sabe com certeza onde se situava a terra de Yam.



A observação bastante comum de que a fauna africana está presente na iconografia egípcia não constitui, de modo algum, prova decisiva da existência de relações entre o Egito e o interior da África. Uma avaliação segura da extensão do conhecimento que os egípcios tinham da África só será possível após investigar a cronologia e o significado qualitativo e quantitativo das diversas referencias a animais encontradas em textos e imagens egípcios.
Quer as relações com a África tenham sido estabelecidas por necessidade, quer por curiosidade, os indícios coletados são por demais inconsistentes e sua interpretação é muito difícil e controversa para que possamos, nesse momento, chegar a qualquer conclusão. Existem, entretanto, vários caminhos abertos para uma investigação frutífera.
A civilização egípcia provavelmente exerceu influencia – embora não se saiba ainda em que medida – sobre as civilizações africanas mais recentes. Ao se procurar abordar essas últimas, seria prudente considerar também a influencia em sentido contrário, isto é, até que ponto o Egito foi influenciado por elas. Uma influencia que se prolongou por mais de 5 mil anos não constitui prova de contatos sincrônicos, do mesmo modo que vestígios de contatos não constituem prova de sua continuidade.
Em termos gerais, os laços entre o Egipto e o continente africano nos tempos faraónicos é um dos temas mais importantes a desafiar os historiógrafos africanos de hoje. Sob qualquer ponto de vista, esse problema constitui um teste para a consciência científica, a precisão e a imparcialidade dos africanos que se empenharem em esclarece-lo, com a ajuda, agora mais lúcida do que no passado,de pesquisadores estrangeiros.


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